João Ricardo Campos nasceu em Manaus, em 1986, e mora no RJ desde 2017, chegando inicialmente em terras cariocas, e depois radicando-se em Niterói. Formado em Publicidade pelo Instituto Federal do Amazonas, trabalha como redator publicitário há 10 anos. Sua primeira e grande inspiração é a avó, Luíza Pereira, mestra da narrativa oral amazônica.
O focinho da poodle se aproximou da canela de Telma.
— Não gosto de cachorro. Bicho barulhento.
Gleice puxou a guia.
— Mas a Panqueca é sossegada, pode ficar tranquila.
Panqueca agitou o rabo e deu um único latido, que ressoou pelo vão da escada. Telma levou o dedo ao ouvido até o som se dissipar.
— Filhinha, é o seguinte, esse é um prédio muito pacato, sabe? São três velhas, contando comigo, uma em cada andar, nenhuma cria cachorro. E outra: tudo doente. A Magnólia do 101 tem problema de coração, não pode se estressar com zoada.
— Ah, claro, claro, eu entendo… Não se preocupe que a minha menina é boazinha.
Telma tomou fôlego e subiu em direção ao seu apartamento, dando as costas ao rabinho vibrante. Vistoriou os vasos de plantas do entorno do sofá, da janela, da cômoda, do quarto de costura, da área de serviço. Um cachorro. Culpa do Adalberto, tinha que ser. Com aquele bucho de cirrose, é claro que ia virar adubo no cemitério. Se pudesse comprava o 301 e deixava trancado. Sem gente, sem bicho, só com a alma penada do Adalberto dentro. Afastou a rama da jiboia, abriu a gaveta e tomou uma pílula. A peperômia reclamava luz. Encruada, não queria dar folhas novas. Mudou-a de lugar, esfregou um pano úmido para livrá-la da poeira, aguou a terra e entrou no quarto de costura para trabalhar.
Na manhã seguinte, as paredes do edifício prestes a ruir sobre sua cama. Acordou em um pulo, e a cabeça latejou. Panqueca latia. Levantou-se e agarrou o interfone. Gleice não atendeu, e o toque fazia a cadela latir ainda mais.
— Alô, Magnólia. Que tal esse barulho, hein?
— Embrulho? Que embrulho?
— BA-RU-LHO! Barulho maldito. Uma cachorra no 301.
— Ah, Telma, que dó da bichinha, que dó… É saudade da moça. Eu a vi saindo de casa cedinho.
— Saudade, Magnólia. Saudade é a puta que pariu, Magnólia.
AU-AU-AU-AU, os estampidos estourando um atrás do outro. Quatro, uma pausa e mais quatro, agora três, quatro. Telma atacou o piso com o cabo da vassoura. Bateu, bateu, os braços indo para cima e para baixo.
— Peste! Peste!
Panqueca havia se calado, o que não durou muito. Telma tornou a bater, e a cabeça girou. Pontinhos brilhantes foram invadindo a sala. Em segundos, o escuro, o nada, o silêncio, a paz, o joelho ardendo. E antes da dor, o latido. Abriu os olhos, que inferno. Se tivesse dado com o quengo no chão? As mãos geladas. Lá vão duas pílulas na garganta.
Passava das quatorze horas. Um senhor gogó aquela criatura tinha. Telma tirou a bandeja de frango da geladeira e guardou de novo. Foi sentar-se à máquina de costura. Drrruum-drrruuum. AU-AU-AU-AU. Drrruum-drrruuum. AU-AU-AU-AU. Arremessou as encomendas no balaio e enfiou duas bolotas de algodão no ouvido. O que queriam as samambaias? Já gozavam de sombra, de umidade, e as folhas ressequidas enfeiando as cabeleiras verdes. Puxou uma a uma as hastes que se esfarelaram entre os dedos. Panqueca no fundo do seu crânio, pingando feito torneira. Com a tesoura de costura, decepou uns braços da ráfia. A peperômia minguada, tinhosa demais, ganhou o peitoril da janela. De repente, os latidos cessaram.
— Dormiu a merdinha.
Telma lançou-se no sofá, e a sala, os vasos, a rua com seu teto de árvores, tudo recuperou aquele tom de vida preguiçosa do meio da tarde. Fez café. O cheiro reacendeu a serenidade dos dias entre linhas e botões. Um sorriso e AU-AU-AU-AU.
Por volta das dezenove horas, Gleice apareceu na rua. O alarido da cachorra a alcançou na calçada. Telma aguardava na penumbra do alto da escada.
— Psiu, filhinha, vem cá, faz favor. Olha, a sua cachorra passou o dia nesse escarcéu. Como é que é? Você sai e deixa essa bomba aqui. Isso não está certo.
Assim que Gleice abriu a porta, Panqueca atirou-se nela lambendo, pulando e soltando guinchos. Mijou-se toda. A poça alargou-se. De cima de um degrau, Telma observou um traço amarelo esticar-se sobre o chão alvo.
— Dona Telma, me desculpa. É só o tempo da adaptação com o ambiente novo. A Panqueca é boazinha que só, eu juro.
A despeito disso, Telma continuou com suas queixas. Gleice pegou um pano com desinfetante e esfregou ao redor. Quando levantou o rosto, estava chorando.
— Dona Telma, acabei de me separar. Meu ex-marido trabalhava de casa, e a Panqueca ficava com ele. Eu só peço um pouquinho de paciência, um pouquinho, tá bom? Ela vai se acostumar — Gleice quis segurar a mão de Telma, mas ela subiu um degrau, virou-se e foi embora.
Durante uma semana, os pipocos de Panqueca expulsaram Telma da cama antes do horário habitual. Os chumaços de algodão não saíram mais dos ouvidos e, eventualmente, encurralava Gleice cobrando uma solução.
— Sim, sim, Dona Telma, eu sei. Vou resolver, tá bem?
Numa manhã, Gleice assustou-se com a cara de Telma parada em frente à sua porta.
— Hoje não, filhinha. Chega! Dê um jeito no seu bicho ou se retire de uma vez. Aqui não é lugar para você.
Gleice saiu, trancou a porta, e os latidos começaram.
— Cala a boca, Panqueca. Shhhhh! — A cachorra chorou baixinho.
— Dona Telma, li as regras do condomínio. O barulho só é proibido a partir das dez da noite. Não lhe devo nenhuma satisfação, com licença, passe bem.
Gleice descia as escadas, e a outra atrás.
— Fora, fora daqui!
— Velha nojenta.
Telma retornou ao seu apartamento. Mexeu nos cabelos. Qual a última vez que tinha se penteado? Apoiou-se na janela. Velha nojenta. Os galhos da árvore plantada pelo seu avô em frente ao edifício roçaram seus braços. Era menina e gostava de ouvi-lo falar. Tão sabido o vovôzinho. Outros tempos.
A peperômia deu broto novo. Telma colocou os óculos e se aproximou. Ao invés de crescer na forma de gota perfeita, com padrões de casca de melancia, a folha dividiu-se ao meio em discos disformes. Duas cabeças verdes no pescoço sinuoso.
Lá embaixo, Panqueca e seu fôlego de aço. Telma jogou as pílulas fora. Apanhou a calça jeans da neta de Magnólia, puxou a língua do bolso, remendou o furo, acomodou dentro e costurou a boca.
— Abre, Magnólia, sou eu.
— Entra.
— Aqui a calça da tua neta. Me diz uma coisa, você ainda tem aquela cópia da chave do finado Adalberto?
— Telma, o bolso tá lacrado.
— É a moda, Magnólia. Tem ou não tem?
— E faltou a bainha, ó, tá pela metade.
— Anda, Magnólia, a chave. A moça do 301 pediu pra eu dar uma olhada na cachorrinha, mas esqueceu de deixar a dela comigo.
— Ah, Telma, vai sim, coitadinha. Deve estar com fome a bichinha.
Magnólia vasculhou uma gaveta cheia de ferragens miúdas, encontrou a cópia e entregou a Telma.
De noite, Gleice surgiu na entrada do prédio e os seus passos ecoaram na escadaria sem os ganidos de Panqueca. Apressou a subida. No terceiro andar, enfiou o sapato numa coisa pegajosa. A luz da sua sala vinha pela porta entreaberta como um filete pontiagudo.
Fotografia: Casa com senhora e cachorro sentados à frente – Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles).